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A Alma dos Edifícios: MemoriAntonia

CeUMA – Centro Universitário MariAntonia da USP

São Paulo|SP

2003

A Alma dos Edifícios: MemoriAntonia

O foco da exposição A Alma dos Edifícios: MemoriAntonia foi o próprio prédio em que ela se realizou -- o local onde nasceu a Universidade de São Paulo e onde ocorreram marcantes acontecimentos na cena política e intelectual do país desdea década de 30. Neste prédio da R. Maria Antonia, 294, funcionou até 1968 a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. A exposição foi também um tributo à memória dos estudantes e professores que resistiram à opressão e à tirania do regime militar de 1964.

A proposta de Horst Hoheisel e Andreas Knitz, da Alemanha, Marcelo Brodsky, da Argentina, e Fulvia Molina, do Brasil,foi proporcionar ao espectador de hoje uma vivência artística centrada nos movimentos sociais e políticos do Brasil, nos anos 60. Foi uma tentativa de ativar a memória, este tempo do amanhã-ontem-hoje, na feliz expressão de

Henri Bergson em que “toda consciência é memória”.

Assim como o ano de 68, esse prédio passou a ser o símbolo da resistência à ditadura.

Na sala em que a exposição foi instalada, as luzes se acendiam à medida que o observador se aproximava dos objetos, era o próprio eco da memória. Também ouviam se ruídos, falas que vinham dos 8 monitores instalados que eram acionados por sensores de presença, cujos sons saiam de entre os objetos: estes falavam, transformavam-se em estranhos e perturbadores ruídos em nossas mentes.

Os objetos, vestígios sem qualquer valor mercadológico, denunciavam o esquecimento e o pouco que sobrou dos acontecimentos de 68. Esquecimento e abandono estes, convenientemente elaborados pelo regime autoritário.

Nos monitores, as imagens simultâneas de líderes estudantis entrevistados no meio dos escombros prédio que abrigara o Centro Acadêmico semi-destruído,  fechado e abandonado por mais de 10 anos. Todas essas pessoas, tinham vivido intensamente os acontecimentos de 68 e se emocionavam quando entravam no prédio. Para a maior parte deles, era a primeira vez que ali estavam depois de 35 anos. Era como o descerramento de um  túmulo, no dizer de Lorenzo Mammì: “a sensação daqueles túmulos em que você entra, abre a porta e se desfaz tudo o que está dentro.”

O sentido dessa instalação era o do processo, da atualização de um tempo. Um hoje de ontem, um do amanhã.

Foram entrevistados alguns líderes estudantis de 1968. Cada um a seu modo registrou nas entrevistas e em suas faces as emoções, o círculo (amanhã-ontem-hoje), e como essa experiência o marcou suas vidas.

Um dos entrevistados, Teotonio Simões Neto, trouxe-nos uma preciosa Lista de Presença de uma assembléia do Grêmio dos estudantes da Faculdade Filosofia de 1966, em que constavam mais de 300 nomes de estudantes presentes, que anotaram de próprio punho os seus nomes, o curso a que pertenciam e apuseram suas assinaturas, inclusive o meu próprio lá estava. Daqueles estudantes presentes, muitos tombaram, mortos ou desaparecidos, nos anos seguintes, pelo regime militar e outros vieram a tornar-se expressivas lideranças políticas, acadêmicas e profissionais do Brasil atual.

Trabalhou-se com  a Lista de Presença em dois modos: apresentando-a em uma espécie de vitrine horizontal, do tipo  encontrável nos laboratórios de antropologia, ao lado dos outros objetos “salvados” do prédio, e que estavam em outras “vitrines”. 

A Lista de Presença me inspirou, também, a fazer o trabalho  que consistia de 6 grandes cilindros verticais de acrílico transparente (com 180 cm de altura, por 60 cm de diâmetro) sobre os quais fixei imagens ampliadas de assembléias e  passeatas estudantis de 1968, da Lista de Presençae dos estudantes que posteriormente morreram ou foram desaparecidos. A página, amarelecida, em que se encontrava a assinatura de cada um destes estudantes foi fundida com a fotografia do mesmo. As suas figuras tornavam-se mais nítidas quando vistas de longe, enquanto que para ler os detalhes de seus nomes e assinaturas e cursos que faziam era necessário chegar  bem perto, tal como a memória, que aparece e desaparece.

São imagens quase fantasmas, trazidas ao presente após longo tempo de adormecimento. Esta memória fala-nos de um tempo, de um lugar, da possibilidade da construção de um projeto coletivo: aí onde o outro podia existir.

Estas imagens com toda a força e beleza do frescor da juventude, misturavam-se com o coletivo também vibrante das assembléias e passeatas, e se confrontavam diretamente com o espectador que caminhasse entre os grandes cilindros, em um confronto direto e perturbador. A Lista de Presença, um documento, um objeto histórico-científico, e os cilindros, poéticos, se entrecruzavam numa relação direta e presentificada com o observador. Eram os nossos mártires, éramos todos nós propondo a liberdade, a experiência, a criação, o conhecimento e o olhar para o outro.

Apareciam como fantasmas. De onde vinham? Será que de um desconhecido futuro?

Estavam ali, mas ao mesmo tempo não estavam mais. O estranhamento era total. Nos monitores, em contra-posição, a maturidade, a qual continuava ainda hoje, questionando, propondo, pensando, com inquietação, o mundo, o outro.

A vivência proporcionada ao espectador pela exposição se completou no encontro-debate que se realizou entre os artistas, participantes dos movimentos de 68 e o público que puderam interagir e trocar emoções: uma forte vivência, uma ação transcultural.

Somos objeto e sujeito, o tempo, a memória, aqui e agora.

“A sala maior da exposição estava ocupada com a memória do prédio da Maria Antônia da Faculdade de Filosofia da USP referente à época da resistência contra a ditadura. Estavam reunidos ali pedaços do prédio anexo que funcionou durante muitos anos — após a transferência da Faculdade para o Campus no Butantã — como administração do sistema carcerário paulista: janelas, uma privada com tampa e a pátina de uma densa camada de pó, excremento e penas de pombo, fotografias de Marcelo Brodsky destes mesmos escombros quando estavam ainda no prédio anexo, antes de terem sido “salvos” pelos artistas Horst Hoheisel e Andreas Knitz. Estes fragmentos lançavam os visitantes em um campo de ruínas onde estes cacos solicitavam um sentido impossível de lhes ser atribuído. A operação que se levava a cabo naquela sala era justamente a recuperação de um passado “amputado”, legado pela ditadura em forma de torso. Os artistas se propuseram a fazê-lo reviver, a juntar os cacos: a dar uma face e uma voz a um passado traumático, difícil de representar, mas que clama por um espaço, por um diálogo. Fulvia Molina construiu cilindros de dimensões humanas com as fotos dos estudantes assassinados durante as lutas em 1968. Ela também realizou uma série de entrevistas com os participantes do movimento estudantil dos anos 60 (sendo que ela mesma fazia parte deste movimento). Em meio a sua pesquisa ela descobriu uma lista com mais de 300 assinaturas de participantes de uma assembléia de 1966. Este documento também foi exposto em uma vitrine horizontal e reproduzido e sobreposto sobre as fotos dos cilindros: construindo hieróglifos da memória, mistos de imagem e texto. Próximo dos cilindros uma série de vídeos apresentavam as entrevistas sobre as lutas anti-ditadura e a poucos passos dos monitores um fone de ouvido permitia aos visitantes escutar a cada uma das falas. Ao entrar na sala vazia, o visitante encontrava-a totalmente escura, apenas com um monitor ligado ao fundo, transmitindo life o trabalho de renovação do prédio anexo. Na medida em que ele se deslocava pelas vitrines — que também continham material jornalístico sobre a história da repressão aos alunos da Maria Antonia — as luzes iam se acendendo e iluminavam apenas o local próximo ao visitante: uma metáfora do trabalho de arqueologia da memória como sempre calcado em um local e no solo do presente.”

Marcio Seligmann-Silva

Professor titular de Teoria Literária

Instituto de Estudos da Linguagem, IEL 

Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP

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